quarta-feira, 24 de junho de 2009

QUE FAZER DE MARCEL DUCHAMP? por affonso romano de sant’anna
Há, pelo menos, duas maneiras de ver essa retrospectiva de Marcel Duchamp no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A primeira é com o olhar de 1917. A segunda é com o olhar de 2008. Com o olhar de cem anos atrás ficaremos pasmos e/ou encantados que alguém tenha decretado o fim da arte transformando, paradoxalmente, qualquer objeto cotidiano em peça de museu. Com o olhar de hoje, de quem já atravessou os caminhos e descaminhos da história e da arte no século 20, exercita-se uma visão crítica que ensine a ver o ontem e questionar o agora.
Duchamp tem sido vítima de dois tipos de leitura: a primeira é uma leitura precária, superficial, repetitiva do que vem sendo dito há cem anos. Pura celebração, escrita de endosso, subserviente, intimidada diante da celebridade e da história. A rigor, é uma leitura anti-duchampiana. É´ o que se faz nos cursos de arte e nos manuais. O segundo tipo de leitura que vitimou Duchamp é a hiper interpretação. Aí situam-se grandes ensaístas, tanto Octávio Paz e sua alucinada interpretação do “Grande Vidro” ou Jean Clair que compara Marcel Duchamp a nada mais nada menos que Leonardo da Vinci.
Não seria já hora de fazemos uma revisão crítica da modernocontemporaneidade? Duchamp é peça fundamental neste processo. Contraditoriamente, o dessacralizador foi sacralizado e os que o seguem são paradoxalmente anti-duchampianos. Contudo, a melhor homenagem que se pode fazer a Duchamp é contestá-lo. Não gratuitamente, mas com argumentos e conceitos pertinentes.
O séc. 20 viveu às custas de três contribuições do sec. 19: o marxismo, a psicanálise, a arte moderna. O marxismo entrou em processo de revisão, a psicanálise está sendo reanalisada. Por que temer a revisão da arte moderna? Uma revisão, enfatizo, não com os olhos do sec. 19, mas do sec. 21.


A COISA AUSENTE

As pessoas que estão indo ver a retrospectiva de Duchamp no MAM devem estar sentindo uma certa estranheza. Além de não conseguirem conferir as obras expostas com as teorias e as expectativas que as precedem, estão indo ver uma coisa que não está lá. Existe um vazio, que se explica, porque na arte conceitual, o conceito é mais importante que a obra. Algumas obras são só o conceito. Por essa razão os objetos que lá estão, o urinol, a roda de bicicleta, o vidro pintado, não têm uma singularidade, podem ser substituídos, replicados por outros urinóis, rodas de bicicleta, etc.
Daí decorre que esse tipo de obra não é para ser “vista” mas para ser “pensada”. Portanto, insistir em “ver” tais obras não nos dará a chave do enigma. O enigma só será desvendado se pensarmos os conceitos geradores da obra. Não é à toa que, espertamente, Duchamp era contra a “arte retiniana” e fazia a apologia do ” homem cego”. Uma análise de tal arte deveria centrar-se nos conceitos que a originaram.
Mas surge, então, uma pergunta perturbadora: por que esses conceitos nunca foram examinados? Ou melhor: esses conceitos resistem a uma análise? Qual o campo para a análise da “arte conceitual”? Certamente não é a estética nem o campo artístico, até porque Duchamp ambiguamente negava a estética e a arte. Daí surge outra questão intrigante: se as teorias artísticas e estéticas não dão conta desses problemas, em que espaço eles devem ser enfrentados?
A resposta é: na área da filosofia, da linguística e da retórica. É até possível dizer que a arte conceitual é um ramo da literatura. No entanto, espantosamente, há cem anos que essas áreas ignoram as riquezas contraditórias das falácias duchampianas.
Trazendo, portanto, o problema para o campo que lhe é próprio, afirmo: Duchamp era um sofista. E os sofistas que prosperaram no sec. IV a.C. na Grécia, prosperaram também muito na modernocontemporaneidade. O sofista acredita poder demonstrar qualquer coisa com seu discurso. Pode dizer, como Zenão, que uma tartaruga corre mais que Aquiles ou, como Duchamp, que qualquer objeto é uma obra de arte. O sofista é um ilusionista da linguagem. Enfrentar o enigma duchampiano é desconstruir o ilusionismo retórico que ele criou. Como alertava Bachelard, há que enfrentar os “obstáculos verbais”. E Lacan, analisando o conto “A carta roubada” de Poe, dizia que a primeira façanha do ilusionista é nos transformar em personagem de sua ficção. Deste modo, os que estão indo ao MAM ver as obras de Duchamp correm o risco de simplesmente caírem numa armadilha verbal.
No meu próximo livro “O enigma vazio”, detenho-me pormenorizadamente sobre as idéias e falácias do discurso duchampiano, aprofundando questões levantadas em “Desconstruir Duchamp”. Aqui, rapidamente, lembro duas delas. A primeira falácia é sua definição de “arte”. Numa entrevista à BBC, em 1968, disse que “etimologicamente” a palavra “arte” significa “agir” e não “fazer”. Equívoco. Em sânscrito, no indo-europeu, no grego, no latim, por exemplo, arte está ligada a “fazer”, à “técnica”. Mas nosso Duchamp acha que pode inventar etimologias. Se dissesse que estava inventando, poderíamos dizer como os lusos- ” tem piada”. Mas, não disse. Se bastasse “agir” para ser artista qualquer pessoa andando na rua seria artista e os animais grandes virtuoses.

ARGUMENTAÇÃO EM DECLIVE

A retórica do frasista Duchamp pode ser desconstruída quando surpreendemos nela o que os lógicos chamam de “argumentação em declive”. Douglas Valton diz que ” o declive escorregadio é um tipo de argumento que começa quando somos levados a reconhecer que uma diferença entre duas coisas não é significativa. Depois disto, pode ser difícil negar que a mesma diferença, entre a segunda e a terceira, também não é significativa. Quando esse tipo de argumento começa, pode ser tarde demais para detê-lo: entramos no declive escorregadio”.
É isto que ocorreu com o urinol (”Fountain) apresentado como obra de arte, ou seja, quando o marchand Arensberg, a mando de Duchamp, argumentou junto à direção da exposição, em 1917, que se alguém mandasse cocô de cavalo como obra de arte, teriam que aceitar. Fazia sentido. Deu no que deu. Esta é uma tática sofista que consiste em encadear afirmações, ilógicas, inverossímeis, absurdas. Se o ouvinte não pára para conferir cada unidade e a des/unidade do conjunto, se verá prisioneiro num encadeamento sem poder achar a saída.
Duchamp exercitou o declive escorregadio quando explicando o “Grande vidro” (-essa obra não terminada e sobre a qual há anotações que os próprios biógrafos chamam de confusas e inexplicáveis), disse que aquela obra é um “atraso”. Mas como “atraso” é algo que ele não sabia como definir pois tem “diferentes sentidos”, aceitou a “totalidade deles”; e assim desembocamos naquilo que ele jubilosamente chama de “indecisão”. E a “indecisão” (ou relativismo) de seu discurso sofista é de tal ordem que ele explica que em vez de “atraso”, poderia dizer que o quadro é um “poema em prosa” ou uma “escarradeira de prata”. Então a obra é tudo e nada, e, sobretudo, uma coisa que não se sabe o que é­. Assim entende-se porque para ele “tão logo começamos a por nossos pensamento em palavras e frases sai tudo errado”.

Por que até hoje ninguém se dispôs a analisar tolices de certas frases duchampianas, que passam por sabedoria, como essa: “Pode alguém fazer obras que não sejam obras de ‘ arte’”? Claro que pode, e Duchamp é um exemplo. Por que não se analisa isto: ” a idéia de julgamento deveria desaparecer”. Ou esse outro disparate: “a palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa”.
Em Duchamp há um problema central: o problema da linguagem. E não sairemos da aporia que ele criou enquanto não decifrarmos a linguagem do problema. Dentro da estratégia da indecisão, os recursos estilísticos usados por ele eram a homonia( palavras semelhantes com significados diferentes), a paronomásia (grafia e pronúncia semelhante e sentido diverso) e anfibologia (termos ambíguos, obscuros). Gostava de trocadilhos e chegou a colecionar centenas deles . Com isto construiu armadilhas verbais e conceituais que iludiram cautos e incautos. Desmontar essas armadilhas é desconstruir um mito. Como mentiroso paradigmático, ele ilustra o clássico “paradoxo do mentiroso”, pois quando o mentiroso diz que está falando a verdade, está mentindo ou não? O fato é que seus solipsismos levaram várias gerações a uma paralisia do pensamento, ao enigma vazio. Ele é o cultor do oxímoro paralisante, o avesso do oxímoro dialético este sim, produtor de conhecimento.
Ter dito ” sou totalmente um pseudo” serve para absolvê-lo? Ter dito “cada palavra que lhes digo é estúpida e falsa” o exime de responsabilidade? E o que dizer desta frase dramática escamoteada por seu adoradores: “Este século é um dos mais baixos na história da arte”. Não é ele responsável por isto?
Individuo sedutor, inteligência brilhante, ilusionista ardiloso, acabou por fazer com que outros tomassem como sendo lei universal, o que era seu modo de ver e de ser. Não se lhe pode negar o direito de ter feito o que fez, ter dito o que disse ou viver a vida que viveu. Isto tinha certo sentido em 1917. O que não se pode é mitificá-lo e deixar de analisar objetivamente sua obra e pensamentos ficando na deliquescente imitação ou fiel adoração.
No final da vida ele disse “os anos mudam e não poderia mais ser um iconoclasta”. Entrou então, ao lado de Calder, para o Instituto Nacional de Letras e Artes dos Estados Unidos. Assim o apóstata voltou ao seio da igreja. É´ como se alguém tivesse a vida inteira garantido aos seus seguidores que não existe céu nem inferno, e , no entanto, ao morrer, se despedisse cinicamente de sua grei dizendo, desculpem-me, me equivoquei, mas estou indo para o céu. Desculpem-me se infernizei a vida de vocês.

(03-8-08.)

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