
Duchamp tem sido vítima de dois tipos de leitura: a primeira é uma leitura precária, superficial, repetitiva do que vem sendo dito há cem anos. Pura celebração, escrita de endosso, subserviente, intimidada diante da celebridade e da história. A rigor, é uma leitura anti-duchampiana. É´ o que se faz nos cursos de arte e nos manuais. O segundo tipo de leitura que vitimou Duchamp é a hiper interpretação. Aí situam-se grandes ensaístas, tanto Octávio Paz e sua alucinada interpretação do “Grande Vidro” ou Jean Clair que compara Marcel Duchamp a nada mais nada menos que Leonardo da Vinci.
Não seria já hora de fazemos uma revisão crítica da modernocontemporaneidade? Duchamp é peça fundamental neste processo. Contraditoriamente, o dessacralizador foi sacralizado e os que o seguem são paradoxalmente anti-duchampianos. Contudo, a melhor homenagem que se pode fazer a Duchamp é contestá-lo. Não gratuitamente, mas com argumentos e conceitos pertinentes.
O séc. 20 viveu às custas de três contribuições do sec. 19: o marxismo, a psicanálise, a arte moderna. O marxismo entrou em processo de revisão, a psicanálise está sendo reanalisada. Por que temer a revisão da arte moderna? Uma revisão, enfatizo, não com os olhos do sec. 19, mas do sec. 21.
A COISA AUSENTE
As pessoas que estão indo ver a retrospectiva de Duchamp no MAM devem estar sentindo uma certa estranheza. Além de não conseguirem conferir as obras expostas com as teorias e as expectativas que as precedem, estão indo ver uma coisa que não está lá. Existe um vazio, que se explica, porque na arte conceitual, o conceito é mais importante que a obra. Algumas obras são só o conceito. Por essa razão os objetos que lá estão, o urinol, a roda de bicicleta, o vidro pintado, não têm uma singularidade, podem ser substituídos, replicados por outros urinóis, rodas de bicicleta, etc.
Daí decorre que esse tipo de obra não é para ser “vista” mas para ser “pensada”. Portanto, insistir em “ver” tais obras não nos dará a chave do enigma. O enigma só será desvendado se pensarmos os conceitos geradores da obra. Não é à toa que, espertamente, Duchamp era contra a “arte retiniana” e fazia a apologia do ” homem cego”. Uma análise de tal arte deveria centrar-se nos conceitos que a originaram.
Mas surge, então, uma pergunta perturbadora: por que esses conceitos nunca foram examinados? Ou melhor: esses conceitos resistem a uma análise? Qual o campo para a análise da “arte conceitual”? Certamente não é a estética nem o campo artístico, até porque Duchamp ambiguamente negava a estética e a arte. Daí surge outra questão intrigante: se as teorias artísticas e estéticas não dão conta desses problemas, em que espaço eles devem ser enfrentados?
A resposta é: na área da filosofia, da linguística e da retórica. É até possível dizer que a arte conceitual é um ramo da literatura. No entanto, espantosamente, há cem anos que essas áreas ignoram as riquezas contraditórias das falácias duchampianas.
Trazendo, portanto, o problema para o campo que lhe é próprio, afirmo: Duchamp era um sofista. E os sofistas que prosperaram no sec. IV a.C. na Grécia, prosperaram também muito na modernocontemporaneidade. O sofista acredita poder demonstrar qualquer coisa com seu discurso. Pode dizer, como Zenão, que uma tartaruga corre mais que Aquiles ou, como Duchamp, que qualquer objeto é uma obra de arte. O sofista é um ilusionista da linguagem. Enfrentar o enigma duchampiano é desconstruir o ilusionismo retórico que ele criou. Como alertava Bachelard, há que enfrentar os “obstáculos verbais”. E Lacan, analisando o conto “A carta roubada” de Poe, dizia que a primeira façanha do ilusionista é nos transformar em personagem de sua ficção. Deste modo, os que estão indo ao MAM ver as obras de Duchamp correm o risco de simplesmente caírem numa armadilha verbal.
No meu próximo livro “O enigma vazio”, detenho-me pormenorizadamente sobre as idéias e falácias do discurso duchampiano, aprofundando questões levantadas em “Desconstruir Duchamp”. Aqui, rapidamente, lembro duas delas. A primeira falácia é sua definição de “arte”. Numa entrevista à BBC, em 1968, disse que “etimologicamente” a palavra “arte” significa “agir” e não “fazer”. Equívoco. Em sânscrito, no indo-europeu, no grego, no latim, por exemplo, arte está ligada a “fazer”, à “técnica”. Mas nosso Duchamp acha que pode inventar etimologias. Se dissesse que estava inventando, poderíamos dizer como os lusos- ” tem piada”. Mas, não disse. Se bastasse “agir” para ser artista qualquer pessoa andando na rua seria artista e os animais grandes virtuoses.
ARGUMENTAÇÃO EM DECLIVE
A retórica do frasista Duchamp pode ser desconstruída quando surpreendemos nela o que os lógicos chamam de “argumentação em declive”. Douglas Valton diz que ” o declive escorregadio é um tipo de argumento que começa quando somos levados a reconhecer que uma diferença entre duas coisas não é significativa. Depois disto, pode ser difícil negar que a mesma diferença, entre a segunda e a terceira, também não é significativa. Quando esse tipo de argumento começa, pode ser tarde demais para detê-lo: entramos no declive escorregadio”.
É isto que ocorreu com o urinol (”Fountain) apresentado como obra de arte, ou seja, quando o marchand Arensberg, a mando de Duchamp, argumentou junto à direção da exposição, em 1917, que se alguém mandasse cocô de cavalo como obra de arte, teriam que aceitar. Fazia sentido. Deu no que deu. Esta é uma tática sofista que consiste em encadear afirmações, ilógicas, inverossímeis, absurdas. Se o ouvinte não pára para conferir cada unidade e a des/unidade do conjunto, se verá prisioneiro num encadeamento sem poder achar a saída.
Duchamp exercitou o declive escorregadio quando explicando o “Grande vidro” (-essa obra não terminada e sobre a qual há anotações que os próprios biógrafos chamam de confusas e inexplicáveis), disse que aquela obra é um “atraso”. Mas como “atraso” é algo que ele não sabia como definir pois tem “diferentes sentidos”, aceitou a “totalidade deles”; e assim desembocamos naquilo que ele jubilosamente chama de “indecisão”. E a “indecisão” (ou relativismo) de seu discurso sofista é de tal ordem que ele explica que em vez de “atraso”, poderia dizer que o quadro é um “poema em prosa” ou uma “escarradeira de prata”. Então a obra é tudo e nada, e, sobretudo, uma coisa que não se sabe o que é. Assim entende-se porque para ele “tão logo começamos a por nossos pensamento em palavras e frases sai tudo errado”.
Por que até hoje ninguém se dispôs a analisar tolices de certas frases duchampianas, que passam por sabedoria, como essa: “Pode alguém fazer obras que não sejam obras de ‘ arte’”? Claro que pode, e Duchamp é um exemplo. Por que não se analisa isto: ” a idéia de julgamento deveria desaparecer”. Ou esse outro disparate: “a palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa”.
Em Duchamp há um problema central: o problema da linguagem. E não sairemos da aporia que ele criou enquanto não decifrarmos a linguagem do problema. Dentro da estratégia da indecisão, os recursos estilísticos usados por ele eram a homonia( palavras semelhantes com significados diferentes), a paronomásia (grafia e pronúncia semelhante e sentido diverso) e anfibologia (termos ambíguos, obscuros). Gostava de trocadilhos e chegou a colecionar centenas deles . Com isto construiu armadilhas verbais e conceituais que iludiram cautos e incautos. Desmontar essas armadilhas é desconstruir um mito. Como mentiroso paradigmático, ele ilustra o clássico “paradoxo do mentiroso”, pois quando o mentiroso diz que está falando a verdade, está mentindo ou não? O fato é que seus solipsismos levaram várias gerações a uma paralisia do pensamento, ao enigma vazio. Ele é o cultor do oxímoro paralisante, o avesso do oxímoro dialético este sim, produtor de conhecimento.
Ter dito ” sou totalmente um pseudo” serve para absolvê-lo? Ter dito “cada palavra que lhes digo é estúpida e falsa” o exime de responsabilidade? E o que dizer desta frase dramática escamoteada por seu adoradores: “Este século é um dos mais baixos na história da arte”. Não é ele responsável por isto?
Individuo sedutor, inteligência brilhante, ilusionista ardiloso, acabou por fazer com que outros tomassem como sendo lei universal, o que era seu modo de ver e de ser. Não se lhe pode negar o direito de ter feito o que fez, ter dito o que disse ou viver a vida que viveu. Isto tinha certo sentido em 1917. O que não se pode é mitificá-lo e deixar de analisar objetivamente sua obra e pensamentos ficando na deliquescente imitação ou fiel adoração.
No final da vida ele disse “os anos mudam e não poderia mais ser um iconoclasta”. Entrou então, ao lado de Calder, para o Instituto Nacional de Letras e Artes dos Estados Unidos. Assim o apóstata voltou ao seio da igreja. É´ como se alguém tivesse a vida inteira garantido aos seus seguidores que não existe céu nem inferno, e , no entanto, ao morrer, se despedisse cinicamente de sua grei dizendo, desculpem-me, me equivoquei, mas estou indo para o céu. Desculpem-me se infernizei a vida de vocês.
(03-8-08.)
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